Dia 07.
Mês Março.
Ano 2014.
Hora: 2:15 - Sentada no sofá sozinha. No quarto, o pai dormia. Eu rasgava papeis e mais papeis. Um a um. Para deitar no lixo o que ficava do registo de outros dias, contas antigas, papeis e mais papeis. Em casa éramos dois, na esperança de sermos de facto brevemente três. Nāo se acredita. Duvida-se. À medida que o tempo passa contam-se dias, para além de pontapés na barriga para garantir a vida dentro de nós. No dia anterior, dia 06, chorava porque nāo senti mexer durante muitas horas. A afliçāo é grande, garanto. Voltei a descansar quando a enfermeira Célia me fez ouvir o coraçāo da Amália dentro de mim. Disse-me: ela tem menos espaço, mexe menos. Calma.
Sentada na sala, dia 07, 2h15 da manhā. Numa vida diferente. Numa outra vida. Senti uma impressāo, uma dor leve. que ficou, foi ficando. Parecia algo que me apertava ao fundo do útero. Uma leve impressāo. Levanto-me. O wc ao fundo do corredor deixou de ter uns metros para ter kms. Ainda assim fui sem pressa. Era uma leve impressāo. A meio dessa estrada longa pensei: nāo aguento chegar à casa de banho. As águas, as famosas águas. Duvidei. Nāo tinha dor. Uma impressāo apenas. Tive a certeza quando nāo conseguia parar. Dava ordem ao corpo: pára. Nada. Água no chāo. A porta de um dos quartos mesmo ali. Abri-a:
- Pedro, acho que é agora.
O pai dormia. Eu, calmamente a rir
- Pedro, Pedro. Pedro. Acho que é agora.
Como mola saltou da cama.
- O que sentes?
- Água. Uma pressāo e água. Temos de contar o tempo. Tens horas? Minutos?
- Isso ainda pode demorar muito tempo.
Hora: 2h30 - A dor leve aparecia de 5 em 5 minutos. O Pedro incrédulo.
- Já? Nāo pode ser. Isso é o tempo que recomendaram para sair e ir para a Maternidade.
- Pedro, é agora. Mas quero tomar banho. Lavar o cabelo e descontrair o corpo. Endireitar-me.
- Estás a gozar????
Nāo estava. Tomei banho. Lavei a cabeça. Na banheira, calma, relaxei. Sentia frio. Tremia. O rolhāo.
- Pedro, estou a ter tudo de uma vez. Acho que nāo temos tempo.
De 3 em 3 minutos. Dor. Suave, mas dor. Contracçāo, sem dúvidas já. Temos de ir.
Troquei de roupa num raciocínio infantil de que assim ficaria melhor. 5 segundos depois estava tudo igual. Água nāo parava. Tudo o que tem de ser feito depressa é feito no intervalo da dor. Parece esquizofrénico. Durante a dor nāo me mexia, respirava. Entre dores, organizava eficientemente os últimos detalhes para a mais bonita viagem da minha vida: escova de dentes, pasta de dentes, a mala, o Kit da Cytothera para recolha das células estaminais.
Tudo. Temos tudo.
O pai diz já à porta de casa:
- Espera. Somos dois. Vamos voltar três. Tenho de filmar isto.
Filmou.
Sorri entre o medo, o amor e a ternura. Vamos.
Fomos.
No carro. 4 piscas. Contracções mais fortes. No sinal vermelho, a polícia.
- Pedro olha a polícia. Cuidado.
Ahahahahahaah Deixei de pensar.
Foi rápido. À noite a cidade deixa passar. Cheguei. Chegámos.
Nesse segundo, entrei e senti: é agora.
Dor maior. Muita dor. Nāo aguento a dor e vomito. De repente. A dor aumentou de 1 para 8, assim num abrir e fechar de olhos. Agarram em mim na Maternidade Alfredo da Costa e nāo me largam mais.
Ouço o ditado que corre pelos corredores: parto vomitado, parto abençoado.
Ouço: tem de aguentar precisamos fazer-lhe um exame e aguardar o resultado para saber se podemos dar a anestesia.
Hora: 3:45
O tempo, o tempo, a dor, o tempo, a espera, a maca, a sala, a māo do Pedro, a dor, a dor enorme, grande, eterna, e o resultado nada. "Tem de esperar. Faça a respiraçāo." As aulas pré-parto aliviaram-me a dor. A respiraçāo. A posiçāo do corpo.
Ser mulher. Ali ser mulher. Doer pelas entranhas. Tāo intensamente. Tāo fundo. Sem gritos. Apenas sussurros.
E os resultados? Nada. Pensava tenho de respirar. Pela Amália. Nāo pode sofrer ela também. A dor a aumentar, sempre a aumentar. E se nāo me podem dar anestesia? Medo.
Por ela. A dor quase me desmaia. Nāo aguento, vomito. Uma vez, e outra e outra vez.
Hora: 4:30
O resultado: podemos dar-lhe a anestesia. 5 minutos e assim será.
Assim foi. Foram os 3 minutos mais difíceis.
Nāo se pode mexer. A contracçāo vem e nāo se pode mexer um milímetro. Tem consciência disto? Sabe as consequências? Sei, sabia. A dor no seu pico. E a voz calma explicava. 4 camadas. A primeira agora. Nāo se mexa. Calma.
A dor, a dor, a dor. Nāo me mexia. Mas a dor.
Assim até à quarta camada. Foram 3 minutos como dias, horas e horas.
Agora vai sentir menos. Você aguenta, vai ver, com uma perna atrás das costas.
Hora: 4:40
Dormia. A dor passou. Dormia. O corpo a trabalhar. Eu dormia. O corpo dilatava sem pedir licença. Eu dormia. De repente acordava com receio de estar a falhar. Nāo. A máquina dava conta da vida dentro de mim. Tudo tranquilo. Dormi muito. Perdi a noçāo do tempo.
No sala de parto, a māo do Pedro sobre a minha cabeça. Em jeito de brincadeira disse: quero ser homem. O Pedro riu. Era mentira, ele sabia que era mentira. Queria ser a tua māe, Amália. Mas o quanto antes. A dor nunca mais voltou. Foi a tranquilidade e a paz que tomou conta da sala. A equipa conversava comigo, explicava calmamente. Foi acontecendo. Tāo rápido. Tāo tranquilo. Tāo perfeito.
Eram 7:58 quando te vi Amália. No meu peito caída a olhar para mim. Observavas. Nāo é mentira: senti tudo. O parto nāo doeu. As poucas horas de contracções, sim senti. Mas tinham razāo. Parto abençoado.
Em mim toda a vida do mundo. Nos meus braços a luz, toda a luz. Vinha também da janela o amanhecer próprio da luz da hora. A pequena grande hora.
Ali amanhecemos. Amanhecemos juntos.
Eram 7:58 do dia 07 de Março de 2014 quando a vida amanheceu para mim.
Nasci contigo. A vida começa aqui.
Bem-Vinda Amália.