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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Raquel


A Raquel (vamos chamar-lhe assim) escreveu-me.
Uma carta cortante. A respiraçāo falhou-me a dado momento. Uma intensidade de palavras sobre como ser māe, mulher e profissional… 
"Como, querida Ana, como?" Um grito desenfreado no papel.

Já devia ter respondido. Passaram-se dias… 

E tenho dado voltas à cabeça. Como, querida Raquel, como?
Infelizmente ainda nāo sei se sou pessoa capaz de responder a esta pergunta de resposta tāo complexa. 
Talvez o tempo desenlace com clareza. 

A Raquel, tal como muitas māes, tal como eu, vive a tentar conciliar a maternidade com o resto. Sim, "o resto" como ela diz. Porque o "resto passou a ser, de facto, tudo."  "tudo o resto." Tudo passou para segundo plano e, em tantos casos, o resto é o que "sobra" de nós. O que "sobra" entenda-se, segundo ela, o que pode ficar. E o "nós"? O "eu"? O "eu" que fomos e queremos continuar a ser? O "nós" e a dita "nossa mochila" que há uns tempos lembrava com uma amiga.
Antes de mais, nas palavras da Raquel, senti um sentimento de culpa que gostava de solidariamente lembrar… É que continuamos a ser pessoas, Raquel. Nāo passamos a ser apenas māes, continuamos a ser pessoas. Mulheres. E isso nāo pode ser uma culpa. É, digo eu, difícil para todas ou, pelo menos para muitas māes como nós. Deve fazer parte, digo eu novamente, adaptar aos tempos recentes depois da chegada de um gigante e intenso furacāo. Mesmo que isso nāo seja dito. Mesmo que nāo pareça. Mesmo que achemos que nāo. Tudo muda. Tudo. Inclusivamente nós. 

Neste lugar escrevo muito, quase sempre, sobre amor incondicional, amor puro, com um foco meio vidrado no lado positivo, esse lado óbvio e incrível do milagre de se ser māe. Mas Raquel, quero dizer que a minha vida, sendo feliz, nāo é perfeita. Claro. Como a sua, claro.
Ao ler o testemunho da Raquel caiu em mim um peso… E por isso escrevo hoje para ela e para todas as pessoas, recém-māes, mulheres… sobre a Raquel e sobre isto de se continuar a ser o que se era e muito mais. Primeiro nāo gostava que a Raquel achasse/acreditasse que a vida dos outros é perfeita. A vida de cada um é o que é, à luz do momento, da circunstância, do tempo, do espaço, do lugar. Tudo é sempre o seu contexto. O seu contexto hoje.
A minha vida, "Raquel", sendo boa, tantas vezes bonita, muitas outras vezes feliz... é também uma vida que outras tantas vezes é triste, com contratempos e com lágrimas. 
Como todas as vidas. Como a de todas as pessoas. 

Raquel… Senti um peso porque… E tenho de dizer… Nāo sei a fórmula para se ser tudo isso. Emocionou-me porque a Raquel acredita que eu sou tudo isso mas pesou-me porque também eu, como a Raquel, nāo sei se sou. Também eu estou a tentar, a nāo desistir, a seguir para ser o que era e ser mais o que virá. Nāo sei de nenhuma fórmula certa. Nenhuma. Nāo sei. Para se ter sucesso no trabalho, para se ser māe e continuar a ser mulher… Nāo sei mesmo. E acho que ninguém saberá.
Desconfio muito que nāo existe fórmula certa. 

Também eu nāo sei prever como será o amanhā. Conseguirei mesmo seguir os meus sonhos profundos e continuar no seu encalço? Nāo sei, Raquel. Sei apenas que hoje sou mais mulher que ontem. Fui māe.  E sinto-me mais mulher. E em muitos campos melhor. 
Mas… Sim, a "liberdade"… 
Fala de liberdade, a Raquel… Percebo bem. Muito bem, Raquel. Nāo condeno. "Parece feio dizer porque sou māe e sinto a ameaça de um nevoeiro que nāo me deixa ver a linha infinita do horizonte. É que ficou tāo distante a liberdade."
Raquel, passo a passo, ainda nāo sei também o que virá do tempo que tive de parar para ser māe. Ainda nāo sei o que virá por ter decidido regressar ao meu país numa altura destas. Ainda nāo sei se um dia nāo terei de voltar a começar do zero. Nāo sei, Raquel. Mas ninguém pode saber sem experimentar. Nāo é? E sem experimentar o que é também maravilhoso e bonito. Será mais fácil para quem tem um trabalho dito regular, dito normal? Nāo saberei também. Talvez. Será mais fácil para quem tem sonhos mais regulares? Nāo saberei também. Há sonhos mais regulares? Talvez. 
Também nāo sei se eu serei exemplo de boa māe, ainda mais mulher e boa profissional. Gostava, sim. Obrigada, Raquel. Mas também ainda nāo sei se sou e se serei.  
A Raquel, a determinada altura, diz que nāo conseguiu regressar ao trabalho. A Raquel nāo tem conseguido ser a Raquel que sempre foi, diz. "Depois de ter sido māe" - afirma - "perdi a liberdade. Ganhei muitas coisas mas tenho de dizer isto que me consome - perdi a liberdade. Nāo sou mais apenas eu e os meus sonhos. Sou um caco e também mil biberons. Eu e panelas de sopa. Eu e pilhas de roupa para lavar e passar. Eu e o pó da casa que se acumula e que tenho de ser eu a limpar. Eu e um marido excelente presente mas que trabalha que nem um cāo, por mim e por nós. Eu deixei de sonhar com a ideia de voltar a trabalhar. O que ganhava era menos do que gastava para pagar as despesas do meu filho na creche, contratar uma empregada e ainda pagar a segurança social e os impostos. Por isto… Nāo consigo trabalhar. Tinha de pagar para trabalhar. E por nāo trabalhar já nāo me sinto eu. Nasci e cresci mulher de força, com armas dentro de mim, e cultivo o amor forte no coraçāo. Mas também achei que conquistaria muito com a minha entrega profissional. Acreditei que seria māe, esposa, mulher e profissional. Os dias vāo passando e nāo sei se vai ser possível. Amo o meu filho. Amo o meu marido. Choro, nem consigo parar, porque é amor. Nāo ache que nāo é. Mas e a minha carreira? O meu dinheiro no bolso para trapos e baton barato que seja? O meu minuto, a minha hora para ler um bom livro ou ver simplesmente a vista? E o meu futuro? Tanto do que sonhei? Como, querida Ana, como? Como posso ser māe, continuar a ser mulher e sonhar em trabalhar? Como? (…)"

Raquel… Nāo haverá māe que nāo entenda o que diz. Eu entendo muito bem. E nāo acho, nāo tenho como achar que nāo é amor. O que coloca em causa nāo é de maneira nenhuma o amor. Para mim, isso é claro.
Importante acho que seja encontrar a dose equilibrada entre os sonhos e a realidade, a dose certa de presente, passado e futuro. É importante nāo esquecer quem é, quem quer continuar a ser. Nāo anular sonhos. Manter muito do que sempre foi. Lembrar todos os dias os sonhos e continuar a respeitá-los e ser capaz de focá-los, alimentá-los ainda mais. Dar tempo ao tempo sem deixar que a vida escape pelas māos. Digo-lhe hoje o que me diz tanto o meu melhor amigo: "o primeiro passo para que a vida nāo te escape é olhares sempre de tantos ângulos para os teus dias nesse alerta constante". 
É sempre tempo de lembrar para nāo esquecer. É sempre altura de nāo se deixar levar pela força das circunstâncias. O primeiro passo, Raquel, é esta carta que escreveu. É esse alerta constante. É saber que precisa de continuar a ser a mesma. Depois, nāo se deixar render e planear. Fazer. Ir fazendo. Raquel, só nāo vale desistir. 
 O "resto" como diz, o "resto" virá. 
E acima de tudo, continue sempre a lembrar, a sentir o amor. Nāo vale olhar de lado o amor. 
Nāo vale arrancar pedaços de amor pela dor. Nāo vale perder para dar pontos ao rancor. Nāo vale quase esquecer o bom, o incrível, o enorme amor que o grande "furacāo" certamente para si também deve ser.  

As māes quando assim tanto querem e tāo firmemente decidem, podem ser e serāo excelentes profissionais. Mesmo quando tudo pareça mais que impossível.
A verdade é que podemos ser māes, mulheres, esposas e continuar a fazer, a alcançar, a sonhar. 
A gasolina deve passar por nāo deixar de sonhar, nāo baixar os braços e continuar a amar.

Nāo vale desistir, Raquel, só construir. 
Obrigada pela carta. É sempre bom lembrar o essencial para nāo deixarmos de tentar, de fazer, de lutar, de ser.
Nāo vale esquecer:
Construir. Sem desistir. Sem esquecer de ser. Sem esquecer de si.

Também eu nāo me vou esquecer de mim.    
Ana









1 comentário:

  1. O tempo devolve-nos muita coisa :) É uma questão de darmos tempo ao tempo e aos poucos voltamos a ter um pouco do nosso tempo precioso, pouco, eu sei, mas imensamente compensado... No que respeita à vida profissional, sei que não tenho grande palavra, o meu trabalho continuou fiel à minha espera e eu fui-lhe também fiel muitas horas durante a licença de maternidade... Mas o que eu aconselho à Raquel, se me permite, é tentar disfrutar da casa, do jardim, ás amigas, dar mais valor ao que pode fazer agora que não conseguia quando estava no auge da carreira... Era o que mais me apetecia a mim... Que o tempo em que tudo volta virá! Um grande beijinho às duas.

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