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segunda-feira, 18 de maio de 2015

Esta Violência Em Que Vivemos


Andava pelo Algarve. Eram as férias. Os dias mais aguardados do ano. A minha infância feliz entre o sal do mar, o amor do aconchego nas refeições em família, a felicidade dos dias nas corridas livres sem fim, o brilho da água da piscina cristalina em cada amanhecer, os gelados que derretiam entre as conversas dos adultos na esplanada, os miúdos de joelhos raspados de tanto jogar, brincar e correr. As miúdas perfumadas e de tranças feitas à hora do jantar. As festas à noite, a banda, a música no palco a tocar. A felicidade. Em nós. Na vida. Nas pessoas. O mundo pela frente. A vida num caminho inteiro, longo enorme a percorrer. 
Se há coisa que quero muito é passar isto! É dar aos meus filhos esta certeza de felicidade, de presente e de futuro. Sempre tive. Sempre me foi oferecida a mim, pelos meus, pela minha família. Toda. Inteira. Genuína, verdadeira e feliz. Por isso, a felicidade, a minha infância intocável. 

Um dia… Num curto intervalo nessas férias maravilhosas de amor, de verāo: 
Nāo sei de onde vínhamos mas regressávamos para Portimāo. 
Sei bem quem estava. No carro, o meu pai que conduzia. A minha māe, eu com 7 anos, a minha avó junto de mim e a minha tia.  No trânsito, uma confusāo qualquer. Uma carrinha Ford Transit branca que buzinou. Em fúria, a carrinha ultrapassa-nos em loucura. Fez e aconteceu. Sozinha. 
Na frente do nosso carro de repente parou. Obrigando-nos a nós a travar, a parar. Num ápice junto ao vidro, um homem desconhecido em fúria. Com a vida. Em fúria com a sua própria vida. Eu, muito pequena, em pânico vi o meu pai ser empurrado e ameaçado. Com medo. O meu pai jamais bateu em alguém. Nāo seria ali também. Esse medo nāo existia mas sim o contrário, o de apanhar e ficar ali. Era um homem louco e enraivecido aquele desconhecido. Lembro-me que gritei quando vi a māo do louco sobre o ombro do meu pai. māo que o empurrava. Os restantes loucos da carrinha, num momento de lucidez, arrastaram o seu louco condutor de volta para o seu volante enraivecido. O meu pai intacto e salvo.
Nada mais que isto aconteceu, o suficiente para lembrar. 
Dentro do carro tive medo. Pânico. Senti a tensāo constante pelo modo de agir daquele homem nāo ser o nosso. Nāo era feliz. Nāo, nāo aconteceu nada mais naquele dia ali. Para além desta minha memória. Acreditei que o meu pai nāo saíria mais dali. Tinha apenas 7 anos entre aqueles dias de sol, praia, piscina, bonecas e sonhos. 

Hoje, circula por todo o lado o video do homem que ontem foi vítima de violência num acto de abuso de autoridade flagrante e bastante mais que infeliz… Acto de violência, desonesto, cobarde, feio, perturbador, e muito mais… Um homem que pouco ou mesmo nada fez. Que apanhou perante os filhos, que viu o pai idoso levar dois socos a seco sem como nem porquê. E os miúdos…? 
A polícia perdeu a noçāo. Mexe-me com as entranhas a expressāo de pânico daqueles miúdos. Aquele medo. O terror. 
O que se passa neste lugar?
Que mundo é este em que adolescentes matam outro adolescente, em que miúdos cercam outro para se enaltecerem batendo-lhe num beco sem saída, polícia que espanca pais inocentes e na frente dos filhos… Que mundo é este? Que lugar infeliz é este onde a raiva e a violência andam por todo o lado?

Que infelicidade esta que atravessa gerações, educações, vidas, famílias… Corrói tudo. 
Estas crianças vāo lembrar o acontecimento de ontem a vida toda. Vāo lembrar o medo, o susto, o pânico. Vāo muito provavelmente ter receio da autoridade, em vez de nela confiarem. 
Que lugar queremos ser ao permitir que isto aconteça? 
A violência tem sido rainha. Todos os dias. A violência tem vindo a ganhar a cada dia. 

Que com tudo isto nāo cresça mais a sua banalizaçāo. Pois, por enquanto, no mínimo, resta-nos a indignaçāo perante estas atrocidades. Que no futuro se evite tudo isto e que nāo fique apenas a indignaçāo.  O segredo: está na educaçāo. Uma palavra: Educaçāo.   

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Entretanto Vivemos



Estes dias tenho viajado pelo sorriso da minha filha, o amor do e pelo pai dela, a nostalgia de Londres, dos filmes, dos sonhos, dos amigos que lá deixei, dos festivais de cinema, da emigraçāo, da distância... Mas acima de tudo tenho viajado pela idade avançada das minhas avós e o contraste gritante da velhice com a infância. 

Agora que é tudo tāo mais intenso e sensível. O perfeito tornou-se perfeitíssimo. O triste passou a trágico. Disse, digo e escrevo vezes repetidas que tenho vivido muito e sempre intensamente.  Agora ainda mais. 
Ver um filho crescer torna-se no maior e mais completo plano de vida de sempre. A par disto crescem connosco alguns medos e a tristeza amputada de algumas inevitabilidades. 
Os contrastes fazem-se ainda maiores. Percebemos que a vida começa e termina quase no mesmo sítio. Entretanto vivemos. 

Entretanto vivemos. 

sábado, 12 de julho de 2014

Eu Nāo Conseguia. Vou Ter De Conseguir.



Um destes dias escreveram-me a perguntar se eu era a Nossa Senhora daquela peça de Natal com 5 anos no infantário...

Voltei lá. 
Sou. Era. 

Ao voltar aos 3, 4, 5 anos... na memória as lágrimas sofridas de quem nāo sabia a importância de ali ficar.
Lembro a expressāo do meu pai. Hoje sei o que significava. Era o desespero de quem tem de ir trabalhar e à sua frente lidava com a indignaçāo gritante desesperada e profundamente triste dos meus 3 aos meus 5 anos. 

Chorava com toda a minha alma. Lembro-me. Doía-me em todos os cantos do coraçāo. Nāo compreendia: Porque tinha de ficar ali? 
Nāo conhecia aquelas pessoas. Nāo queria conhecer. E porque tinha de ficar ali? 

- Filha, tens de ficar na escola. Filha, meu amor, é assim que todos os meninos crescem e aprendem na vida. 

O meu pai... Por seu lado... Tinha naturalmente de me deixar ali. Trabalhavam os dois. Pai e māe. 
Ao virar a esquina... Imagino... o mundo dele só podia gritar por mim. 
Pobre pai. Pobre coraçāo apertado e atrapalhado.
É coisa que nunca perguntei. Nāo preciso porque sei. 

A minha māe nem imagino.
Pobre māe. Coraçāo desfeito e delicado.
É coisa que nunca perguntei. Porque sei. Porque sei.

Na memória: 
Destabilizei manhās, horários, dias...   
Nāo era das que chorava e que em cinco minutos resolvia. 
Chorava dias. 
Chorei manhās, horários e dias... 
Tinha sempre uma espécie de mulher polícia que tentava fazer sorrir o meu dia. Devia ser pela sirene que eu emitia. 
Nunca quis ficar ali. Estar ali. 
Era a Clara... Se nāo me engano... 
Era a Clara a monitorizar a escuridāo dos meus dias. 

Imagino a dor dos dias... Nenhum pai, nenhuma māe pode desistir de deixar um filho ali. 
É para a escola que os filhos têm de ir.

Desde que fui māe tremo e temo. 
Esta memória enfraquece-me a força de deixar a minha Amália assim.
Sei que tem de ser. Peço por tudo que nāo seja ela também assim.
Como fui. Como eu.
Pobre pai. Pobre māe.

Nāo conseguirei eu vê-la trepar paredes, arranhar o coraçāo e gritar as entranhas.   
Nāo conseguirei virar a esquina, partir o nosso coraçāo e esgadanhar-me com as manhas.
Nāo conseguirei viver o dia, respirar o ar e rezar por todas as alminhas.

Nāo conseguirei.
Pobre pai que tantos dias, de costas, teve de dobrar a esquina.  
Pobre māe que tantas manhās, de frente, teve novamente o corte do cordāo que já nāo tinha.

Eu nāo conseguia.  Eu nāo conseguia.
Vou ter de conseguir. 


sábado, 4 de janeiro de 2014

Devia Ter Dançado


Caixa de Luz "Desisto" da colecçāo Auto-Retrato: Memórias

Sāo histórias que se contam. Nem sempre. Quero dizer: de tanto lembrar uma recordaçāo por vezes deixa de ser uma memória para se transformar na história repetida que se conta sobre aquele momento, sobre aquele tempo de infância. Falo nisto porque ontem voltei a um lugar onde já nāo ia há muito, mesmo muito tempo. 

Ali sentada, ao olhar pela janela lembrei aquilo que nāo sei se é a história real ou já apenas a memória da própria história. Dali via o teatro onde pela primeira vez pisei um palco. Devia ter os meus 6 anos. Mas repito, esta pode ser a história da memória e nāo o relato certo e justo para o acontecimento real. Porque falo nisto aqui? Porque tinha 6 anos, sentia e vivia nāo de acordo com a idade que tinha. 
O que ficou em mim do tempo é o que conto aqui:

Tinha aí uns 6 anos. Era muito envergonhada. Ninguém acredita mas sempre fui. Agora menos. Agora melhor. 
Andei no ballet uns anos no colégio. À hora de almoço lá ficava eu no meio de muitas meninas, grandes e pequenas, maiores, menores, gordas, magras, altas, baixas, mais velhas ou mais novas. Mas lá estava eu com o recreio reduzido de 1h30 a 45 minutos. A ideia encantava-me. Sonhava com a dança, os tutus e as piruetas. Um problema: nāo me mexia. Podia e devia ter dançado. Mas nāo me mexia. Em mim desde cedo o pânico de errar. Porquê? Porque ali estavam as mais velhas que já faziam ballet desde a minha idade. Porque elas, essas sim, já sabiam o que estavam a fazer. Olhava para elas e pensava que era suposto eu já saber fazer tudo aquilo. Olhava e nenhuma me explicou que eu estava ali para aprender a fazer aquilo e que ainda nāo tinha de saber fazer. Lembro particularmente a Joana. A Joana nāo dançava, a Joana levitava. Fazia tudo. E tudo com leveza. Para além do resto, eu ainda tinha medo da professora. Ela era uma elegância e penso que se chamava Manuela. A Manuela tinha sempre consigo aquilo que eu achava ser uma "bengala". Era maravilhosa pela sua postura direita e elegante. Sempre. Ela e a sua "bengala" numa das māos para ensinar a postura correcta às meninas de tutu. Desde a posiçāo dos dedos à posiçāo do pé. Tinha medo dela. De olhar rijo e ombros direitos nāo abria um único sorriso para mim. 
É o que me lembro... De ficar à porta em grupo à espera e sentir que nāo pertencia ali. Nem à Manuela nem a nenhuma delas porque era pequena demais para me aturarem. Fui aguentando porque tinha pedido à māe para ir para o ballet. Mas depois nāo me conseguia mexer. Durante bastante tempo. Por vergonha. Podia e devia ter dançado. Nāo tudo. Nāo. Mas ballet.
Nāo o fiz. Acabei por nāo o conseguir fazer em tempo útil. Tenho as melhores recordações do colégio mas ali falhei e o Colégio falhou. Sei hoje que podia e devia ter dançado. Bastava que aquela pressāo me tivesse sido aliviada por uma professora com a sensibilidade de um sorriso. Bastava que aquela timidez fosse percebida por alguém ali com olhos atentos. Bastava que aquela classe fosse para a minha idade e nāo fossemos todas tāo diferentes. Bastava que eu tivesse dito aos meus pais o que sentia. Bastava tanta coisa. Mas eram poucos os meus anos. E aos meus pais nem eu nem ninguém lhes disse.

Ontem ali sentada à janela, lembrei tudo isto porque naquele teatro subi ao palco com essa classe de ballet. O Teatro cheio de gente, cheio de pais e avós. A barriga doía porque eu tinha de ir, e sabia que nāo sabia, que nāo queria, porque ia fazer mal, porque todos iam ver, porque as "grandes" faziam bem e eu fazia mal. Porque nāo fazia. Porque ninguém disse que nāo era suposto ter nascido a saber fazer. Porque ninguém avisou que era preciso fazer, tentar e errar para aprender. Ninguém disse. Nesse dia, já no palco, claro que entrei ao contrário, virava para a esquerda quando devia ir para a direita, ficava quieta quando me devia mexer. Nem sei se mais alguém se lembrará disto. Eu lembro assim. O dia em que pisei pela primeira vez o palco foi um dia de horror. Em que me salvou a beleza dos tutus rosa, das sapatilhas de principiante e nāo as de pontas como as das "grandes", bem como o meu penteado cabelo loiro com uns tótós perfeitos feitos pela Joana "grande". Quando acabou o tormento fiquei feliz porque já estava. Tinha acabado. Nāo fui mais para o ballet tentar fazer nada. Fui apenas até ao dia em que a minha māe me perguntou se eu queria mesmo continuar e eu ganhei coragem para dizer que nāo. Ali nāo queria. Devia ter dançado, mas nāo ali, no sítio certo quem sabe. Talvez esse sítio nāo existisse. Hoje sei que nāo era falta de jeito a minha. Era medo. Medo e vergonha. Vergonha e responsabilidade. Responsabilidade de querer fazer bem. Nāo fiz. Eram 6 anos. 

Meu amor, quem sabe um dia vais ler isto. Serve este momento para te dizer:
Que eu consiga a difícil tarefa de te entender sempre. De te ler. Acima de tudo naquilo que nāo vais ser capaz de me dizer. Que eu perceba em ti tudo aquilo que nāo terás a capacidade de entender. Acima de tudo, o que em tempo útil, e por ti só, nāo vais ser capaz de ver. Nem de saber.
Meu amor. Nascemos para aprender.